quinta-feira, 28 de julho de 2011

Aterro/Parque do Flamengo

Hoje no Parque:

A desfiguração do Parque tombado pelo evento da FIFA é rápida, suntuosa e de "entrega" internacional; ou seja, destituída de brasilidade e de simplicidade, num mundo necessitado de recursos e dinheiro.


Técnicos preparam a Marina da Glória para
o sorteio das Eliminatórias da Copa de 2014 - Fonte: R7
Em notícia publicada em um jornal paulista é afirmado que "a estrutura é maior do que a de congressos da Fifa em Zurique, feitos em pavilhão similar ao Riocentro. Nem a cerimônia de anúncio das sedes das Copas de 2018 e 2022, no ano passado, atingiu tal patamar." (confira)

Tudo isto em completo descaso e desprezo pela história de criação deste fantástico Parque público, que continuamos a contar abaixo. 

Imagino que, a esta altura, as autoridades do IPHAN e do seu Conselho Consultivo já não consigam dormir, em face das suas responsabilidades (...).



Um Central Park tropical III

Dois importantes colaboradores e o rompimento de uma grande amizade
 
Lota despachava num barracão de obras provisório junto a Área de Piquenique original. O local era desconfortável e ficava em meio ao ermo do parque ainda em construção.

Foi ali que Lota recebeu uma nova colaboradora: Ethel Bauzer Medeiros, que lhe fora indicada por um órgão internacional de recreação. A princípio reticente, Ethel logo se deixou cativar “pelo gesto de lota, pioneiro no país: chamar um educador desde o início do planejamento de um parque.”

Lota não tencionava construir um parque convencional “com chafariz, bancos, estátua e brinquedinhos para crianças”. Idealizava um espaço que contribuísse para a melhoria da qualidade de vida de seus frequentadores. Resulta daí que os playgrounds deveriam ser pensados como lugares de educação continuada. (Hoje, a área destinada ao bosque de pic-nic foi destruído pelo "dono" da pedaço do Parque, chamado de Marina da Glória).

Ethel propôs espaços específicos para os bebês, crianças, adolescentes e idosos, com um número significativo de áreas livres que proporcionassem a todos a sensação de não estarem em meio ao trânsito de automóveis.

Com a inclusão de Ethel no Grupo de Trabalho, surgiram as primeiras dissidências. Roberto Burle Marx abespinhou-se com o fato de Ethel ser a responsável pelos playgrounds. Jorge Moreira aderiu à dissidência e ficou um bom tempo estremecido com Lota, que não deu muito importância ao fato, pois tinha outras prioridades em que pensar.

Dentre elas uma crucial: conseguir o tombamento do parque pelo Patrimônio. Embora ainda não concluído, mas apenas projetado, Lota via nesse instrumento jurídico a única salvaguarda da área contra a sanha da especulação imobiliária. Com esse fim, encaminhou pedido formal ao diretor de Patrimônio, Rodrigo Melo Franco de Andrade.

A segunda prioridade consistia em cuidar do projeto de iluminação do parque. O profissional escolhido para realizá-lo foi o americano Richard Kelly, que se apaixonou pelo parque e para ele concebeu “um sistema que iluminasse como uma noite de luar intenso”. Os meios para se chegar a esse fim: “apenas cento e doze postes de quarenta e cinco metros, suportando uma armação com seis projetores substituiriam os mil oitocentos postes previstos”.

Se “nada no aterro seria banal”, Lota de Macedo Soares teria, como sempre, de se proteger e enfrentar a artilharia pesada vinda de todos os lados: a indústria nacional não podia responder às exigências dos postes e complementos concebidos por Richard Kelly. Mas Lota os defendeu de unhas e dentes, usando argumentos técnicos – o Brasil não dispunha de especialistas em luminotécnica - e estéticos – a iluminação tinha um sentido plástico.

Matou mais esse leão. Faltavam muitos outros de diversas ordens. Mas, das cargas, talvez a mais pesada de segurar e ser absorvida foi a campanha de difamação promovida por Roberto Burle Marx.

Desde a contratação de Ethel Bauzer Medeiros, seguida do projeto de iluminação de Richard Kelly, que ele chamava de Abajurlândia, Burle Marx partia para duras ofensas pessoais referindo-se à Lota como pequena ditadora ou Joana D’Arc do Aterro.

Essa artilharia, talvez fosse uma resposta às decisões tomadas por Lota em prol da economia de recursos públicos, ao aconselhar a Sursan que procurasse outras empresas para fornecer grama para o Parque, que não a de Burle Marx, pelo fato de esta propor preços astronômicos por m².

Em carta enviada ao jornal O Globo, em resposta às críticas assestadas por Burle Marx, Lota arrematava: “Essa ‘prepotência’[a ela atribuída por Burle Marx] deu ao Estado uma economia de mais de cem milhões de cruzeiros, o que naturalmente mudou a opinião que tinha o Sr. Roberto Burle Marx do meu temperamento, antes tão apreciado.”

Razões de Estado e Razões do Afeto entrelaçadas começavam a minar a saúde de ferro da miúda e franzina criatura, toda nervos, toda luz. O Parque do Flamengo, aos trancos e barrancos se tornava uma realidade, como também era real que tirava de Lota de Macedo Soares as energias necessárias para ficar de pé.

*Todas as citações entre parênteses constantes deste texto foram extraídas de: Oliveira, Carmen L. "Flores raras e banalíssimas: a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop". Rio de Janeiro, Rocco 1995.


No próximo bloco: Do entulho surge um imenso parque

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Aterro do Flamengo, um Central Park tropical II

Lota e sua equipe tentam o inimaginável: planejar*
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Enquanto isto, não deixem de ver o asfaltamento feito na Marina da Glória, para o sorteio da Copa, e as estruturas fechadas e escuras do "grande" evento ao custo de R$ 30 milhões, por algumas horas; valor que se equipara à totalidade das obras do PAC da comunidade do Cantagalo ! Sem contar com o custo do fechamento do Aeroporto Santos Dumont por 4 horas (?). Isto que é lugar adequado ! (confira) Por que as televisões não pagaram por este custo?

Lota de Macedo Soares não tinha diploma, mas reuniu uma comissão de colaboradores diplomados para ninguém botar defeito. A adesão dos convocados não foi de pronto. Todos tinham, mesmo que vaga, a dimensão da complexidade do empreendimento.



O sonho de Lota era de grandes proporções físicas e implicava esforços materiais e intelectuais de igual monta, além de ter de enfrentar a resistência compacta e obstinada daqueles que ela passou a denominar de “sursânicos”, os técnicos da Sursan que plantavam uma pedra diante de cada passo que ela ameaçava dar.



Quando se fala na construção do Aterro do Flamengo, o nome mais comumente lembrado é o Affonso Eduardo Reidy. Sim, Reidy fez verdadeiramente parte da equipe pilotada por Lota, que o convocou como urbanista, não só por sua expertise no métier, mas também por sua experiência de trinta anos como funcionário da Prefeitura do Rio.

Roberto Burle Marx, grande amigo de Lota, foi indicado para se encarregar do paisagismo, Alexandre Wollner da programação visual, e Jorge Moreira e Sérgio Bernardes da arquitetura.



Reidy e Sérgio Moreira relutaram em abraçar o projeto e só o fizeram em razão da amizade que nutriam por Lota.



A batalha de Lota e sua comissão constitui um capítulo importante da História da Mentalidade Administrativa no Brasil, que ainda está para ser formalmente escrita, mas que reúne exemplos suficientes para constituir uma enciclopédia.



Se não vejamos: após analisarem a viabilidade de conclusão do projeto em quatro anos, Lota e sua comissão concluíram que ela seria possível, mas muito trabalhosa.

É o que se pode constatar num trecho de seu relato sobre as primeiras pedras no caminho:



“(...) empacamos no problema da área usável para os jardins. Pensamos em duas pistas para carros. Mas a Sursan defende com unhas e dentes que o Aterro seja ocupado pro quatro pistas. (...)



Desde 1954 que a Sursan deveria ter mandado fazer o estudo da orla do mar. Por que não mandou até hoje? Mistério. Diz a Sursan: Vocês façam toda a planta do Aterro, com praias, restaurantes à beira-mar, etc. e aí mandaremos fazer o estudo. Bolas isso é querer que se façam duas plantas, já que o estudo hidráulico é que dirá se a praia que nós vamos indicar no projeto será ou não naturalmente formada pelo mar, ou se será artificialmente ajudada. A cada terça-feira surge uma informação diferente.”

Sucederam-se muitas terças-feiras, até que Lota chegou à conclusão que, para manter as rédeas nas mãos, teria de transformar a Comissão em Grupo de Trabalho ao qual ficaria atribuída a tarefa de tomar as decisões relativas à parte aterrada e à orla marítima. À Sursan caberia apenas executar o determinado pelo Grupo.

O Grupo foi criado, por meio do Decreto 607, publicado no Diário Oficial, em 04/10/1961, que incluía todas as prerrogativas estabelecidas por Lota.Mesmo assim, quinze dias depois, "O Globo" publicava uma declaração de Gilberto Morand Paixão, engenheiro-chefe do 12º distrito de obras da Sursan, em que este tornava claro o nebuloso: dizia que a destinação das áreas do Aterro ainda era indefinida e o que de certo havia era a construção de quatro pistas para veículos...



Indignada, Lota apelou para o vice-governador e, finalmente, conseguiu reverter o processo, fazendo com que se aprovassem as duas pistas, e não as quatro.

A essa altura, sua vida já estava tragada pelo inferno kafkiano dos jogos políticos e das intrigas de gabinete, que ela absolutamente não dominava. Em prol de seu sonho disparava cartas em todas as direções batendo-se, inclusive por causas não diretamente relacionadas à construção do Aterro.

Assim, não deixou de torpedear Carlos Lacerda contra construção de um hotel internacional no morro do Pasmado. Como bem salienta Carmem L. Oliveira, o governador conhecia claramente como Lota pensava os elementos da paisagem como patrimônio dos cidadãos.



Mas, por outro lado, um investimento internacional significava a entrada de milhões dólares para o Estado. (os mesmos argumentos de hoje em dia, e sempre...).



Ao longo da correspondência entre Lota e seu amigo agora governador, assistem-se os embates entre a Razão Prática e a Razão Utópica. No caso da construção do hotel no morro do Pasmado, Lota fala de barbarismo, estupidez e crime e lembra ao amigo “que não era democrático destruir o patrimônio de todos para aliviar a sorte de alguns.”

E em defesa do conjunto do Hotel Glória, vituperou: “Não cometa a estupidez de entregar ao Hotel Glória os estacionamentos previstos para servirem de jardim!” (Será que esta ameaça se concretizou 50 anos depois???)



Por vezes, o embate era aquele de racionalidades diferentes, como foi o caso da discussão entre os dois, presenciada por um estupefato ajudante de ordens, sobre o melhor e mais econômico revestimento para os jardins do Aterro.

Lacerda era a favor do saibro, que, do ponto de vista de Lota, seria destruído na primeira chuva. Para ela, a grama era mais barata e durável.

Diante da teimosia do governador e amigo, Lota não teve papas na língua:



- Carlos, deixa de ser idiota, Carlos!




*Todas as citações entre parênteses constantes deste texto foram extraídas de: Oliveira, Carmen L. "Flores raras e banalíssimas: a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop". Rio de Janeiro, Rocco 1995.

Aterro do Flamengo, um Central Park tropical


Às vésperas de parte do Parque do Flamengo - o pedaço da Marina da Glória -ser tomado por seu novo "dono", o Sr. E.Batista, com suas tendas gigantescas a festejar, num evento que custará R$ 30 milhões aos cofres públicos do Rio de Janeiro, o sorteio das eliminatórias da Copa de 2014, resolvemos contar, em quatro partes, a história da criação do Parque, para sabermos o que estamos prestes a destruir, privatizando este inigualável espaço público (...).

1ª parte – Uma Profecia*

"Aquela miúda e franzina criatura, toda nervos, toda luz que se chamava Dona Lota".

Carlos Lacerda

Quem vem e vai pelo Aterro do Flamengo não supõe o que ele custou. Pode calcular o que tenha custado em cifras, mas, se esse sujeito que por lá transita nasceu nos anos 70, terá uma ideia defasada dessas cifras em relação ao que elas tornaram possível: de um entulho que era a continuação do Aterro da Glória foi feito um parque a perder de vista que constitui uma das mais belas paisagens da cidade do Rio de Janeiro.

Paisagem natural e urbana, patrimônio tombado pelo IPHAN, local de lazer de milhares de cariocas e espaço de repouso do olhar de tantos outros.

Lota de Macedo
Mas o Aterro do Flamengo não se avalia apenas por números, mas, sobretudo, pela tenacidade enérgica e inesgotável de uma mulher morena, miúda, inteligentíssima e solar que se chamava Lota de Macedo Soares.

Seu pai, José Eduardo Macedo Soares, além de jornalista, envolveu-se muito com a política e foi exilado durante o governo de Artur Bernardes. Esse exílio contribuiu para fazer dela uma cidadã do mundo: tornou-se poliglota, culta, profunda conhecedora das artes e uma apaixonada pelo urbanismo, termo e prática palidamente conhecidos no Brasil de então.

Lota era amiga e vizinha de Carlos Lacerda na serra de Petrópolis, onde ambos tinham sítios. Varavam tardes e noites em longas conversas sobre os mais variados assuntos. A interlocução entre eles era fluida e fecunda.

Assim, foi inevitável que, quando empossado primeiro governador da Guanabara, Lacerda quisesse, de alguma maneira, ter Lota como sua colaboradora.

É Carmem L. Oliveira – biógrafa de Lota, a cuja obra Flores Raras e Banalíssimas recorreremos sempre para, nessa série de relatos, comentarmos alguns aspectos relevantes da aventura da construção do Aterro do Flamengo – quem nos relata em que circunstância Lota foi definitivamente capturada para empreender essa obra que mudou o perfil da orla carioca, que se estende desde a Avenida Beira Mar até a Praia de Botafogo.

Em 5 de dezembro de 1960, Lacerda comemorava sua vitória na campanha eleitoral em seu apartamento na Praia do Flamengo. Lota era, naturalmente, uma das convidadas.

O recém empossado governador aproximou-se da amiga e, mais uma vez, insistiu: precisava dela como colaboradora do que quer que fosse. Lota continuava relutando, argumentando não possuir um diploma de curso superior. O governador não se convencia e, então, vencida, “Lota apontou para um entulho exatamente em frente ao apartamento do governador. Era a continuação do aterro da Glória. – Dê-me este aterro. Vou fazer ali um Central Park.”


Aterro do Flamengo - Início da década de 60

Sem diploma universitário, e pensando que não seria adequado ganhar salário, por pertencer a uma família abastada, Lota de Macedo Soares foi nomeada, em 20 de janeiro de 1961, sem ônus para o Estado, como assessora especial do Departamento de Parques da Secretaria de Geral de Viação e Obras e da Superintendência de Urbanização e Saneamento (Sursan) “para estudar a urbanização das áreas decorrentes do aterro do Flamengo e Botafogo”.

Na Sursan (Superintendência de urbanização e saneamento), guarda-chuva de engenheiros e arquitetos, Lota de Macedo Soares era vista com desconfiança. Ela seria, no máximo, “uma coadjuvante” do governador, sem qualificação técnica para opinar num projeto do porte como o do Aterro.

Lota não possuía diploma universitário e não precisava ganhar dinheiro, este passou a ser o bordão incansável de seus detratores.

Eles não perdiam por esperar. Entendendo que “o aterro era dela”, Lota quis imediatamente tomar pé do andamento das obras. Examinou detalhadamente o PA-7175, projeto aprovado onde constavam informações sobre as obras do Aterro já iniciadas de entrocamento, pistas, passagens de pedestres e sobre a situação dos clubes náuticos.

Dominando o conhecimento da situação, Lota escreveu a Carlos Lacerda, em 20 de fevereiro de 1961, fazendo uma profecia:

“A área do aterro pede especial cuidado no sentido de se conservar a sua privilegiada paisagem e a brisa marítima, e de se transformar um simples corredor para automóveis numa imensa área arborizada, que será dentro em breve um marco da cidade, tão famoso quanto são o Pão de Açúcar e as calçadas de Copacabana.”


Tendas para o Preliminary Draw, dia 30/07, na Marina da Glória

*Todas as citações entre parênteses constantes deste texto foram extraídas de: Oliveira, Carmen L. "Flores raras e banalíssimas: a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop". Rio de Janeiro, Rocco 1995.